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Arquivo mensal: julho 2012

René Descartes e o espiritismo

Sobre determinadas questões, a Religião e a Filosofia parecem estabelecer um acordo de cavalheiros. Em uma reunião a portas fechadas, avaliam as principais inquietações do espírito humano e as formalizam em problemas, cuja responsabilidade é dividida entre cada uma delas. Pensar sobre a vida após a morte, por exemplo, é função da Religião, enquanto refletir sobre como o pensamento pensa a si próprio é papel da Filosofia. No entanto, há questões humanas que são litigiosas, e tanto a Filosofia quanto a Religião se sentem no direito de resolvê-las. A relação entre a alma e o corpo é uma delas.

Em determinado momento de sua História, a Religião esteve muito próxima da Filosofia. Não, não estou falando da patrística nem da escolástica medievais – que celebraram o casamento de conveniência entre a fé e a razão -, mas sim da filosofia cartesiana e do espiritismo. René Descartes (1596-1650) e Allan Kardec (1804-1869), embora afastados um do outro em torno de duzentos anos, buscaram responder de modo semelhante ao problema da relação entre a alma e o corpo – e ambas as respostas são problemáticas nos dias de hoje. Vejamos como isso aconteceu.

René Descartes reconhecia que existia uma substância pensante – a alma – e uma substância extensa – o corpo. Os músculos se movimentam, o sangue circula, os cinco sentidos são estimulados pelos objetos que se encontram à nossa volta. Por outro lado, a alma raciocina, é afetada de alegria, deseja e ambiciona alcançar um objetivo. Aparentemente, não há nada demais em dizer que a razão é uma atividade da alma e que o movimento é uma atividade do corpo. O problema, no entanto, se encontra em explicar como a alma age sobre o corpo e como o corpo afeta a alma.

Segundo Descartes, a alma está vinculada ao corpo de dois modos. Em primeiro lugar, por não ter extensão alguma, ela está unida ao corpo todo, e não a alguma região em particular. Em segundo lugar, exerce suas funções, mais particularmente, em uma glândula do cérebro, a glândula pineal, órgão intermediário que torna possível a interação entre a alma e o corpo. A luz emitida por um objeto, por exemplo, fere cada um dos olhos. Os nervos ópticos são estimulados para finalmente projetar a imagem do objeto na glândula pineal, possibilitando que a alma pudesse perceber o objeto.

A teoria cartesiana da percepção apresenta um grave problema. A alma percebe e se conscientiza dos objetos externos através, por exemplo, dos impulsos luminosos dirigidos dos órgãos da visão à glândula pineal. Sabemos, portanto, o que ocorre no caminho que vai do mundo exterior até a glândula pineal. No entanto, ficamos sem saber o que torna possível que a própria alma “perceba” a imagem dos objetos exteriores. Entendemos todo o processo fisiológico, mas continuamos sem saber como a alma “vê” imagens. Será que no interior da alma do corpo há uma outra alma, uma alma da alma, que torna possível que as imagens dos objetos exteriores sejam percebidos? Mas e essa alma da alma, o que torna possível que ela perceba? Recuaríamos infinitamente se continuássemos nosso raciocínio. Ficamos sem saber como, de fato, a percepção realmente ocorre.

O espiritismo não só não conseguiu superar esse problema como também nos chamou a atenção para outro. De acordo com a Doutrina Espírita, entre a alma e o corpo há um intermediário que permite a interação entre ambos: o perispírito. A alma ou o espírito “percebe” o mundo através do perispírito. Novamente, conhecemos o processo fisiológico que vai dos órgãos dos sentidos até o perispírito – no caso da teoria cartesiana, até a glândula pineal -, mas não sabemos como o próprio espírito “percebe” o mundo exterior. Esse problema já o conhecemos.

O segundo problema se encontra no meio da cadeia que vai do corpo até o espírito: o perispírito. Segundo o espiritismo, o perispírito é semimaterial, o que lhe permite estabelecer o vínculo entre o corpo (material) e o espírito (imaterial). Mas e entre o perispírito e o espírito e o perispírito e o corpo? Há um salto na comunicação entre o corpo e o perispírito e entre o perispírito e o espírito? Ou seriam necessárias substâncias intermediárias? E entre essas substâncias intermediárias, outras ainda? Caímos, então, em um segundo problema: seriam necessários infinitos intermediários para superar a distância que existe entre substâncias de natureza distinta. Não é necessário dizer que esse mesmo problema já se encontrava na teoria cartesiana.

A crítica ao dualismo da relação entre corpo e mente não significa o abandono de suas investigações. Apontar os problemas insuperáveis de uma perspectiva que admite para si que corpo e alma são duas substâncias, duas entidades completamente distintas não nos conduz, inevitavelmente, para um beco sem saída. Há, sim, diversas outras possibilidades de investigar a relação ente corpo e alma. Creio que o único modo de conduzir seriamente as investigações a respeito da mente é superar, definitivamente, qualquer tipo de abordagem dualista, seja ela cartesiana ou espírita, e adotar uma abordagem monista. Na filosofia da mente, o monismo nos ensina que o corpo e a alma não são duas entidades ou substâncias distintas, mas sim duas propriedades de uma mesma substância. O ser humano não seria uma junção entre uma alma e um corpo; o ser humano é a alma e o corpo reunidos, o ser humano é a própria substância. A alma e o corpo seriam apenas duas propriedades dessa substância que se chama ser humano.

No monismo, então, o problema de como a alma e o corpo se comunicam deixa de fazer sentido. Esse problema estava na pauta do dia apenas quando era preciso investigar como duas substâncias distintas se comunicam. Quando a alma e o corpo são entendidos como constituintes de uma mesma substância, de um mesmo ser, então ambos já estão, intimamente, vinculados. Alma e corpo deixam de ser desconhecidos entre si para se tornarem parceiros de uma vida.