Início » 2012 » julho (Página 2)

Arquivo mensal: julho 2012

Ser vivente e ser virtual

The Mimetic Starfish, instalação de Richard Brown no Itaú Cultural.

Tenho me interessado pelo desenvolvimento da arte contemporânea, o que inclui a relação entre produção artística e desenvolvimento tecnológico. Não caio na tentação de tentar explicar a primeira pela segunda: seria um atentado contra a arte. No entanto, diferentemente dos saudosistas míopes, incapazes de construir novas palavras para novas coisas, não sou ingênuo a ponto de desmerecer os contatos frutíferos que vem surgindo nos últimos anos entre arte e tecnologia.

É preciso diagnosticar as tendências que o tempo atual nos impõe para, somente então, propor alternativas sociais mais criativas e democráticas. Por esse motivo, visitei a exposição Emoção Art.ficial 6.0, no instituto Itaú Cultural, cujo principal objetivo é tratar dos novos problemas impostos à arte contemporânea, particularmente em sua intersecção com a tecnologia.

Não pretendo discorrer longamente sobre todas as obras da exposição, no total de dez. Cada uma delas levanta problemas particulares – alguns novos, outros antigos -, e tratar de todos eles exigiria muito da paciência do leitor. Quero, portanto, abordar uma obra em particular. Na verdade, quero levantar um único problema de uma obra.

A obra em questão é uma instalação do britânico Richard Brown, chamada The Mimetic Starfish (literalmente, “A estrela-do-mar mimética”). É uma estrela-do-mar virtual projetada sobre uma superfície lisa e opaca e que, programada com tecnologia de redes neurais, “imita” (daí a expressão “mimética”) movimentos de uma estrela-do-mar real. Se a instalação se restringisse a essa projeção, muito pouco ou quase nada traria de novo para o cenário artístico contemporâneo.

A estrela-do-mar, no entanto, é sensível ao toque, capaz de reagir ao contato do visitante. Os tentáculos virtuais podem se prolongar ou mesmo se contorcer, interagindo de acordo com a vontade do visitante. Ao simular/imitar movimentos de uma estrela-do-mar real e promover a interação entre a estrela-do-mar virtual e o visitante, a instalação levanta um importante problema não só para o domínio artístico, mas também para o científico e mesmo para o filosófico: uma estrela-do-mar virtual pode ser equiparada com uma estrela-do-mar real? um ser virtual possui o mesmo estatuto de um ser real? enfim, quais são os limites entre um ser virtual e um ser real ou, mais propriamente, um ser vivente?

Suponhamos que 5 mil pessoas – entre adultos, crianças, idosos etc. – tenham visitado a mostra Emoção Art.ficial 6.0, interagindo com todas as dez obras da exposição, inclusive a The Mimetic Starfish. Suponhamos, também, que todos os visitantes “apertaram”, “cutucaram”, “pressionaram” e “arrastaram” a projeção virtual pelos menos uma vez por, no mínimo, dez segundos – nem estou levando em conta nessa estatística a particularidade da interação infantil, que elevaria infinitamente o tempo e a intensidade do contato com a estrela-do-mar. No mínimo, a estrela-do-mar teria sido “tocada” durante 50 mil segundos, ou seja, mais de 13 horas!!! Que estrela-do-mar seria forte o suficiente para resistir a um contato tão agressivo como esse que foi promovido pelos visitantes da mostra?

Na verdade, entre uma estrela-do-mar real/vivente e outra virtual, apenas a segunda seria capaz de resistir a essa agressão. Pode-se tocar nela infinitamente, sem causar qualquer tipo de prejuízo à sua suposta, simulada e “imitada” vitalidade. A estrela-do-mar virtual não se confunde, portanto, com uma estrela-do-mar vivente, com um ser vivente, cuja vida certamente seria prejudicada pelo contato constante e cruel dos visitantes da mostra.

Um ser virtual se confunde com um ser vivente? Não, não se confunde. A imagem e o funcionamento de uma estrela-do-mar virtual são determinados pelas condições de um ambiente virtual. A não ser que o suporte tecnológico falhe, a “existência” da estrela-do-mar virtual não tem limites – por isso que a interação dos visitantes pode ser infinita. Já a vida de uma estrela-do-mar vivente é determinada pelas condições de um ambiente ecológico e cosmológico. Sua existência, sua vida é previamente limitada. E jamais resistiria a uma avalanche de “apertos” e “cutucões”.