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“Cura gay”: vamos levar esse tema a sério?

Em 15 set. 2017, o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho concedeu uma liminar que suspende uma antiga resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que definia os parâmetros da atividade profissional do psicólogo para atuar nas questões relativas à orientação sexual. Em síntese: a liminar permite que os psicólogos tratem a homossexualidade como uma patologia, como uma doença.

A liminar concedida pelo juiz Waldemar atende a uma ação movida por um pequeno grupo de psicólogos favoráveis ao entendimento da homossexualidade como doença. De acordo com o advogado Leonardo Cavalcanti, que representa esse grupo de psicólogos, a Terapia de Reversão Sexual, também conhecida popularmente como “cura gay”, seria direcionada para determinada classe de pacientes homossexuais. Entendo que a “cura gay” nada mais é que uma pseudociência, pois manipula conceitos científicos para justificar valores morais e religiosos. Mas vamos investigar mais de perto o que está envolvido nessa decisão.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho Federal de Psicologia, em acordo com aquela entidade, não avaliam a homossexualidade como patologia do ser humano. Declarar que a homossexualidade é doença é contrariar esses dois importantes órgãos de saúde. Quais foram, então, os subterfúgios utilizados por aquele grupo de psicólogos para justificar a “cura gay”? Quais foram os procedimentos utilizados pelo advogado para “driblar” as normas estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde e pelo Conselho Federal de Psicologia? O advogado que representa o grupo argumenta que o objetivo é tratar de uma patologia específica e que é reconhecida pelo Código Internacional de Doenças (CID): a orientação sexual egodistônica. A “cura gay”, portanto, estaria voltada ao tratamento de homossexuais diagnosticados por sua orientação sexual egodistônica.

A orientação sexual egodistônica caracteriza a relação conflituosa entre o paciente e sua orientação sexual. O paciente reconhece sua orientação sexual, mas a rejeita. A rejeição do paciente pode ser motivada pela moral, pela vergonha ou mesmo pelo pudor. Para não contrariar sua própria educação moral, o homem que reconhece sua orientação homossexual pode, por exemplo, preferir se relacionar somente com mulheres. Da mesma forma, a mulher pode abrir mão de sua paixão por outra mulher para evitar o sentimento de vergonha.

É importante sublinhar, no entanto, que esse conflito pode ocorrer em qualquer tipo de orientação sexual. Apesar de sua orientação heterossexual, a mulher pode, por exemplo, se relacionar somente com mulheres, pois sua história é marcada por eventos que a levaram a avaliar o gênero masculino como sujo e impróprio. O homem evita comentar sobre seu desejo por outras mulheres para não criar animosidade com seu parceiro.

Esses são somente alguns exemplos de uma orientação sexual egodistônica, mas são suficientes para nos mostrar que o fundamento dessa patologia não é a orientação sexual propriamente dita (bissexualidade, heterossexualidade, homossexualidade, pansexualidade etc.), e sim o conflito do paciente com sua orientação sexual. Para o Código Internacional de Doenças, a doença não está na orientação sexual, seja ela homossexual ou heterossexual, e sim no conflito do paciente com sua orientação sexual.

De acordo com o advogado que representa o grupo de psicólogos que moveram a ação favorável ao entendimento de que a homossexualidade é uma doença, a “cura gay” estaria orientada a tratar pacientes diagnosticados por sua orientação sexual egodistônica. Para conduzir a uma resolução do tratamento, essas terapias não levariam o paciente a investigar as causas de sua resistência diante de sua orientação sexual. O objetivo da Terapia de Reversão Sexual seria preservar os mecanismos de defesa (vergonha, pudor, moral), mas alterar a orientação sexual, reduzindo ou mesmo eliminando o conflito do paciente com sua orientação sexual.

Não sejamos tão ingênuos. A Terapia de Reversão Sexual não está interessada em tratar pacientes diagnosticados por sua orientação sexual egodistônica. Essa pseudoterapia está voltada somente a pacientes homossexuais (não nos esqueçamos: “cura gay”). Essa exclusividade ocorre porque essa suposta técnica terapêutica não possui nenhum compromisso com o paciente, e sim com valores morais e religiosos. Seu objetivo é o ajustamento da orientação sexual do indivíduo a determinadas normas morais e religiosas.

Suponhamos que a Terapia de Reversão Sexual estivesse, de fato, voltada a todo e qualquer paciente diagnosticado por sua orientação sexual egodistônica, e não somente aos homossexuais. Nessas condições, deveríamos conceder-lhe crédito? Não. Toda terapia que estiver voltada ao ajustamento do indivíduo a normas morais deve ser abandonada.

O advogado argumenta que essa terapia seria orientada somente àqueles pacientes que não nasceram homossexuais, mas que se tornaram homossexuais por causa de experiências traumáticas. Existe, aqui, um grande equívoco. E por dois motivos.

Em primeiro lugar, ninguém nasce homossexual ou heterossexual, mas todos nascemos potencialmente bissexuais. A orientação sexual não é determinada por fatores biológicos, por caracteres genéticos, mas é elaborada principalmente logo nos primeiros anos de vida. Apesar dessa elaboração aparentemente precoce, a orientação sexual predominante de uma pessoa pode se manifestar somente na fase adulta. Ainda pode ocorrer de uma pessoa transitar entre duas ou mais orientações ao longo de sua existência. A orientação sexual de cada indivíduo, portanto, está intimamente atrelada ao desenvolvimento de sua sexualidade, principalmente em sua infância.

Em segundo lugar, não se altera arbitrariamente a orientação sexual de ninguém. Não consumar um encontro sexual não significa dizer que não há o desejo de consumar esse encontro. Privar uma pessoa de realizar seu encontro amoroso não elimina seu desejo, mas pode levá-la a realizar esse desejo por outros meios: por meio de sintomas, por meio do adoecimento.

Ainda de acordo com o grupo de psicólogos, o objetivo de permitir a suposta “cura gay” é incentivar a pesquisa no âmbito das ciências psicológicas. No entanto, esses psicólogos incorrem em uma grave petição de princípio, ou seja, estabelecem como princípio de seu raciocínio justamente a sua conclusão. Aquilo que deveria ser provado somente ao fim de sua argumentação ou de sua pesquisa é tomado como premissa de toda a investigação. Isso quer dizer que, de acordo com esses psicólogos, tratar a homossexualidade como doença é fundamental para, ao fim de um tratamento pseudopsicológico, provar que a homossexualidade é uma doença. Mas por que eu precisaria provar que a homossexualidade é uma doença se já tenho a convicção que a homossexualidade é uma doença? Da mesma forma, como posso utilizar como argumento aquilo mesmo que eu quero provar? Enfim, uma constelação de erros.

Como vocês podem notar, nenhum dos argumentos que supostamente deveriam fundamentar a famigerada “cura gay” é sólido o suficiente. A “cura gay”, portanto, nada mais é do que pseudociência. Valores morais e religiosos que, ardilosa e deliberadamente, manipulam conceitos estabelecidos para alcançar seus fins particulares.


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